Proposta
teórico-metodológica da Cartografia Geográfica
Crítica
As
exposições e reflexões que apresentamos
até aqui levam a concepções e práticas
diferentes daquelas predominantes na Cartografia Geográfica
brasileira. Tomando-as como base, apresentamos uma proposta
teórico-metodológica crítica para
a Cartografia Geográfica que a coloca a serviço
da Geografia Crítica. Esta proposta, a Cartografia
Geográfica Crítica, tem como base a leitura
desconstrucionista do mapa e considera a semiologia
gráfica, a visualização cartográfica
e a modelização gráfica abordagens
cartográficas intercomplementares. Por concordarmos
com os fundamentos da Geografia Crítica, nossa
proposta pretende contribuir para o desenvolvimento
desta corrente com a valorização do mapeamento
e do mapa na Geografia, tornando o discurso e a prática
da Geografia mais influentes na produção
do espaço. Para isso, na proposição
da CGC, nos dedicamos à aproximação
dos fundamentos teóricos e metodológicos
do mapa àqueles da Geografia Crítica.
A CGC é uma práxis cartográfica
que compreende simultaneamente teoria, método
e técnica.
Teoria:
a CGC tem como principal fundamento teórico a
leitura desconstrucionista do mapa, cuja base é
o trabalho de Harley (1989). Essa leitura do mapa é
uma crítica à sua concepção
tradicional, que o vincula exclusivamente ao positivismo.
Segundo essa leitura, o mapeador não é
apenas um transcritor do espaço; ele contribui
diretamente para sua produção. Ainda em
relação à teoria do mapa, a CGC
está também baseada nas proposições
da semiologia gráfica, da visualização
cartográfica e da modelização gráfica.
A semiologia gráfica contribui como base para
o desenvolvimento das elaborações cartográficas
através de suas normas, que definem os procedimentos
mais adequados para a comunicação da informação
espacial através do mapa. Esta abordagem garante
a eficiência na comunicação dos
resultados. A visualização cartográfica
fornece os fundamentos para utilizar o mapa como instrumento
de exploração dos dados, descoberta de
novas informações, padrões, rupturas,
simetrias e dissimetrias no espaço geográfico.
A visualização cartográfica confere
ao mapa ainda mais importância/utilidade na análise
espacial e por isso é um avanço em relação
à semiologia gráfica, porém não
a suprime; elas são intercomplementares. A coremática
apresenta um conjunto teórico bastante amplo
sobre a representação espacial e a natureza
da Geografia; ela culmina como um amálgama entre
semiologia gráfica e visualização
cartográfica, fornecendo contribuições
ímpares para representação e análise
do espaço. A coremática é o principal
avanço para compreender a importância da
representação espacial na Geografia. Neste
sentido, um ponto importante no qual insistimos na CGC
é trazer a modelização gráfica
como abordagem cartográfica indispensável
para o desenvolvimento da teoria crítica do mapa,
o que não é considerado na literatura
anglo-saxã sobre o tema.
Método:
o método é o caminho traçado pelo
autor mapeador a partir do uso da teoria e da técnica
para o desenvolvimento do processo de mapeamento e da
análise. De acordo com os objetivos do mapeador,
o método inclui a escolha das técnicas,
dos dados, do formato dos dados, das formas de representação,
dos conceitos, dos elementos a serem representados ou
omitidos e do uso que o pesquisador faz do mapa no seu
trabalho. O método é como o autor pensa,
representa e analisa o espaço, por isso compreende
sua intencionalidade. Propomos que a CGC, como parte
do método particular de cada pesquisador, tem
como característica, assim como a Geografia Crítica,
a ênfase nos problemas sociais e a promoção
de uma cartografia geográfica com preocupações
sociais.
Técnica:
propomos que na análise espacial seja utilizado,
de acordo com a teoria crítica do mapa e de forma
intercomplementar, o conjunto de técnicas compreendidas
pela semiologia gráfica, visualização
cartográfica e modelização gráfica.
Para isso, na CGC é necessário levar em
consideração os estabelecimentos da semiologia
gráfica; são indispensáveis as
ferramentas da cartomática, de exploração
de dados e de sensoriamento remoto, as quais permitem
atingir os objetivos da visualização cartográfica,
e a elaboração de modelos deve fazer parte
da investigação geográfica. As
técnicas devem possibilitar que o processo de
mapeamento promova descobertas(51). A utilização
conjunta das três abordagens cartográficas
possibilita: a) um resultado final do processo de mapeamento
eficiente na comunicação; b) a máxima
apreensão dos fenômenos espaciais; c) embasamento
teórico que permite estabelecer relação
direta com as teorias e conceitos geográficos;
d) metodologias e técnicas de mapeamento diferentes,
porém complementares, o que possibilita representação/análise
de um mesmo fenômeno de diversas formas.
Na CGC classificamos os mapas em mapas de configuração
territorial(52) e mapas de configuração
sintagmática(53), de acordo com o tipo
de representação, a potencialidade de
análise do espaço e os elementos enfatizados.
Para esta classificação tomamos como referência
a concepção de espaço geográfico
apresentada por Milton Santos (2002 [1996]), já
discutida no capítulo 1. Segundo esta concepção,
o espaço geográfico é formado por
um “conjunto indissociável, solidário
e também contraditório, de sistemas de
objetos e sistemas de ações, não
considerados isoladamente, mas como o quadro único
no qual a história se dá.” (p.63).
A partir da indissociabilidade de sistemas de ações
e sistemas de objetos, é possível afirmar
que os dois grupos de mapas que distinguimos representam,
ao mesmo tempo, sistemas de objetos e sistemas de ações.
O que os diferencia é a ênfase em um ou
em outro sistema. Nos mapas de configuração
territorial são enfatizados os sistemas de objetos,
sendo elementos principais desses mapas as rodovias,
ferrovias, hidrovias cidades, hidrelétricas,
indústrias, hidrografia, vegetação,
reservas minerais etc. Nos mapas da configuração
sintagmática são enfatizados os sistemas
de ações, de forma que os temas principais
são população, renda, migração,
produção, concentração fundiária,
educação etc. Esses dois conjuntos de
mapas devem ser compreendidos como intercomplementares
na análise espacial. A Cartografia Geográfica
Crítica tem como preocupação o
desenvolvimento e utilização de mapas
desses dois grupos.
Uma classificação mais pragmática
pode ser elaborada quando tomamos como base as classificações
dos mapas que apresentamos no capítulo 2 e os
fundamentos das três abordagens cartográficas
(semiologia gráfica, visualização
cartográfica e modelização gráfica).
A referência principal desta classificação
é o tratamento e análise dos dados, que
podem ser realizados na base de dados ou em conjunto
com a base cartográfica. São três
tipos: mapas de variação, mapas exploratórios
e mapas sinóticos, cada um relacionado mais proximamente
a uma abordagem cartográfica.
Os mapas de variação estão relacionados
à semiologia gráfica e são aqueles
em que os dados e informações são
representados sem nenhum processamento(54)
ou análise de conjunto, seja entre os próprios
dados ou então através de sua integração
com a base cartográfica. Os designamos mapas
de variação porque a sua função
é basicamente comunicar a variação
dos dados, seja ela quantitativa, qualitativa ou territorial
(localizacional). O mapa 10.2 é um exemplo de
mapa de variação. Ele apresenta a área
plantada de soja nos municípios brasileiros em
2006. A partir dele é possível visualizar
onde se produziu soja (variação territorial)
e qual a área plantada de soja (variação
quantitativa).

MAPA
10.2 – Exemplo de mapa de variação
O
segundo tipo é o dos mapas exploratórios,
relacionados à visualização cartográfica.
Esses mapas também permitem visualizar as variações,
mas vão além, pois há o processamento
dos dados representados, seja estabelecendo relações
apenas na tabela de dados ou então com a integração
entre a tabela e a base cartográfica. Os processamentos
podem ser realizados através de análise
de agrupamentos, análise fatorial(55),
diagrama triangular, correlação espacial,
análise de superfície de tendência
etc. De forma geral, são operações
que possibilitam a exploração dos dados
por meio do mapa para que possam ser visualizadas informações
impossíveis somente com a representação
direta dos dados. Isso permite verificar hipóteses,
padrões, tendências e rupturas no espaço.
O mapa 10.3 é um exemplo de mapa exploratório.
Ele representa a exploração, por meio
da classificação hierárquica ascendente,
dos dados de área plantada de soja entre 1990
e 2006. Como no mapa 10.2, também é possível
observar em quais microrregiões a soja foi produzida
e qual a área plantada, porém o mapa mostra
mais. Além da variação territorial
(onde a soja foi produzida) e quantitativa (quanto se
plantou de soja em ha), o mapa indica a dinâmica
da produção de soja nos últimos
16 anos. É possível analisar se a área
ocupada com soja está crescendo ou diminuindo
nas microrregiões, além de possibilitar
a visualização da relação
espacial na dinâmica da cultura.
No mapa 10.3 os círculos amarelos indicam as
microrregiões onde houve diminuição
sutil e constante da área plantada de soja durante
o período analisado. Os círculos verdes
indicam as microrregiões em que a área
plantada aumentou de forma mais significa a partir de
1998 até 2002, sendo que em 2003 a área
plantada passou a apresentar diminuição.
O terceiro grupo, representado pelos círculos
em azul-claro, compreende as microrregiões sem
alterações significativas na área
plantada até o ano 2001, quando passaram a apresentar
crescimento, intensificado a partir de 2003. O quarto
grupo, dos círculos em azul-escuro, é
das microrregiões que apresentaram intensa diminuição
na área plantada com soja desde 1990.

MAPA
10.3 – Exemplo de mapa exploratório
Os
mapas sinóticos compõem o terceiro tipo.
Eles possuem características que os aproximam
dos fundamentos da modelização gráfica,
mesmo que a modelização gráfica
tenha como resultado principal os modelos, e não
os mapas. Os mapas sinóticos são elaborados
a partir da interpretação de conjuntos
de mapas de variação e exploratórios.
Eles compõem um estágio avançado
da pesquisa, quando o pesquisador já possui conhecimento
amplo dos temas analisados. Os mapas sinóticos
têm a função de demonstrar, de acordo
com os objetivos e interpretações do autor,
os fenômenos geográficos. A elaboração
dos mapas sinóticos é caracterizada por
ser mais livre e comportar maior subjetividade. Para
esta elaboração a exatidão é
menos rígida e o objetivo central é interpretar
e demonstrar os fenômenos geográficos.
Isso compreende um maior grau de generalização.
Esses mapas comportam conceitos geográficos relativos
à interpretação dos fenômenos
pelo autor. Um exemplo é o mapa 10.4. Para a
sua elaboração foi utilizado o mapa de
variação 10.2, outros mapas de variação
desde o ano 1990 até 2006 e o mapa exploratório
10.3. Somente o conteúdo do mapa de variação
10.2 está explícito no mapa 10.4, pois
os outros mapas foram utilizados para estabelecer o
território e o direcionamento do processo de
territorialização. O mapa 10.4 apresenta
dois processos geográficos: o território,
onde a soja apresenta maior peso na produção
de culturas, e a territorialização, ou
seja, a região em que a área produzida
com soja vem aumentando intensamente na última
década. Assim, através da sintetização
do conjunto de informações de diversos
mapas é possível, através de uma
representação sinótica, expressar
a interpretação do fenômeno pelo
autor através de conceitos geográficos.

MAPA
10.4 – Exemplo de mapa sinótico
Com
esse três tipos de mapa e os modelos gráficos,
as possibilidades de representação e análise
do espaço são tantas quanto forem os mapeadores.
A partir dessas formas de representação,
acreditamos ser possível representar e analisar
de maneira adequada os sistemas de objetos e os sistemas
de ações, bem como a interação
entre eles, para o que é necessário identificar
as estruturas elementares pelas quais passa o domínio
do espaço – os coremas. Contudo, esta prática
só é possível se admitimos que
o mapa, como fonte de conhecimento, portador de textualidade
e retórica, e, portanto, poder, é um território
imaterial que, por representar imaterialidade e materialidade,
contribui para a formação de territórios
por meio da apropriação, influência
ou domínio do espaço pelos diversos sujeitos
territoriais. Assim, como construções
sociais, os mapas são parte do processo de produção
do espaço geográfico pelas sociedades.
A
CGC é crítica por duas razões:
a) por adotar a teoria crítica do mapa, que contesta
a compreensão positivista tradicional e b) por
ter como referência os fundamentos da Geografia
Crítica, e por isso prever que o mapeamento enfatize
a análise das desigualdades sociais. O mapa,
como parte indissociável do discurso geográfico,
deve ser elaborado e utilizado pelas diversas especialidades
da Geografia. Neste sentido, a CGC é uma proposta
teórico-metodológica que agrupa um conjunto
de teoria, técnica e método que, utilizados
conjuntamente com as teorias também críticas
das outras especialidades geográficas, possibilitam
uma leitura crítica da realidade com auxílio
do mapa.
Com a CGC esperamos despertar um debate para repensar
o uso que o mapa tem tido na Geografia brasileira. Na
CGC apresentamos proposições que acreditamos
contribuir para que o mapa seja revalorizado entre os
geógrafos; demonstramos alguns elementos que
contribuem para o reconhecimento do potencial do mapa
para a ampliação das possibilidades de
intervenção na realidade através
da crítica geográfica. Pretendemos continuar
com o desenvolvimento da CGC por meio de releituras,
novas leituras, debates com os colegas e pesquisas temáticas
na Geografia. A CGC não é uma proposta
acabada, deverá ser lapidada através de
práticas e debates, por isso será foco
de nossos esforços futuros. O debate sobre as
bases teóricas e instrumentais da Cartografia
Geográfica brasileira deve ser iniciado imediatamente
para que seja possível estabelecer um destino
mais promissor do que aquele previsto atualmente para
esta especialidade geográfica.
A seguir, na parte B do trabalho, a partir da proposta
da CGC, desenvolvemos o Atlas da Questão Agrária
Brasileira. Utilizamos elementos das três abordagens
cartográficas e os princípios teóricos
da natureza do mapa defendidos na CGC. A tarefa envolveu
um amplo conjunto de técnicas cartográficas
e um exercício constante de considerar o mapa
parte indissociável da análise. Com o
Atlas, a parte B é uma continuação
da parte A, já que constituí a exemplificação
da proposta da CGC.
NOTAS
(51) Como exemplo de programa de cartomática
e exploração de dados citamos o Philcarto,
que utilizamos no desenvolvimento de nossas pesquisas
(ver apêndices 01 e 02-A). Quanto aos SIGs, temos
desenvolvido nossos trabalhos com o auxílio do
SPRING. Ambos são programas livres com ótimo
desempenho e grande variedade de ferramentas. Obviamente
que além desses existem diversos outros, principalmente
comerciais como o MapInfo, ArcGIS, Cartes & Données,
dentre tantos outros.
(52) A este respeito, ver a definição
de configuração territorial estabelecida
por Milton Santos (seção 1.1).
(53) Utilizamos o termo sintagmática em referência
à conceituação elaborada por Raffestin
(1993 [1980]) ao utilizar o termo ator sintagmático
como aquele que “manifesta, com precisão,
a idéia de processo e de articulações
sucessivas no interior do processo. Assim, todas as
organizações, da família ao Estado,
passando pelos partidos, pelas igrejas e as empresas,
são atores sintagmáticos. O ator sintagmático
combina todas as espécies de elementos para ‘produzir”,
lato sensu, uma ou várias coisas. O Estado é
um ator sintagmático quando empreende uma reforma
agrária, organiza o território, constrói
uma rede rodoviária etc. A empresa é um
ator sintagmático quando realiza um programa
de produção. Isso significa que o ator
sintagmático articula momentos diferentes de
realização do seu programa pela integração
de capacidades múltiplas e variadas. Esses atores
sintagmáticos são, portanto, constituídos
por atores-indivíduos que se integram ou são
integrados num processo programado.” (p.40).
(54) Consideramos mapas de variação aqueles
que representam porcentagens, pois para este cálculo
não há análise do conjunto de dados.
(55) Embora as operações de análise
de agrupamentos (cluster analysis) e análise
fatorial não dependam do mapeamento dos dados,
programas como o Philcarto permitem interatividade entre
os dados processados e sua representação
sobre a base cartográfica.
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