A
Cartografia Geográfica brasileira
Geografia
brasileira contemporânea, pela grande influência
da Geografia Crítica, negligencia o mapa como
instrumento da análise geográfica e como
parte do discurso geográfico. Para entender melhor
a atual situação do mapa na Geografia
brasileira, é necessário analisar seu
papel nas correntes geográficas tradicional,
pragmática e crítica. A Geografia Tradicional
tem sua fundamentação filosófica
no positivismo e apresenta uma leitura linear da realidade,
baseada principalmente no palpável. Segundo Moraes
(2003), o positivismo leva à redução
da realidade ao mundo dos sentidos e com base nele os
trabalhos científicos são desenvolvidos
a partir da aparência dos fenômenos. Nesta
corrente teórica predomina a máxima de
que a “Geografia é uma ciência empírica,
pautada na observação”. A descrição,
enumeração e classificação
dos fatos foram os procedimentos aos quais a Geografia
Tradicional se limitou.
Utilizado nas escolas de Humboldt, Ritter e Ratzel,
o mapa ganha destaque ainda maior na Geografia Regional
de Vidal de La Blache, juntamente com as tipologias.
Os estudos consistiam em um levantamento cartográfico
inicial e “a conclusão em geral constituída
por um conjunto de cartas, cada uma referente a um capítulo,
as quais sobrepostas dariam relações entre
os elementos da vida regional.” (MORAES, 2003,
p.78). Através da influência da proposta
de La Blache, Max Sorre propõe uma metodologia
de pesquisa geográfica que
partia
da Cartografia: a idéia de uma sobreposição
de dados da observação, em um mesmo
espaço, analisando historicamente a formação
de cada elemento desde os naturais (solo, vegetação
etc.) até os sociais (hábitos alimentares,
religião etc.). Assim, se chegaria a compor,
por sobreposição das informações,
um quadro de situação atual, e aí
se estudaria seu funcionamento, inter-relacionando
os elementos presentes. (MORAES, 2003, p.81).
Procedimentos
semelhantes aos de Sorre são propostos por Hartshorne
na Geografia Idiográfica e na Geografia Nomotética(40).
A ampla utilização dos mapas na Geografia
Tradicional, trazida para o Brasil pelos principalmente
pelos franceses, é fruto do processo de sistematização
da disciplina e do momento histórico dos seus
fundadores. A busca pelo aperfeiçoamento das
técnicas cartográficas foi constante na
Geografia Tradicional, para a qual “o próprio
desenvolvimento das técnicas de descrição
e representação também foi um saldo
favorável.” (MORAES, 2003, p.91). A concepção
de espaço estava ligada ao mapeável. Os
levantamentos de informações tinham como
destino o mapeamento e o cruzamento das informações
era realizado através dos mapas. Geografia e
mapa eram indissociáveis para os pesquisadores
desta corrente.
A partir de meados da década de 1970 ocorre o
processo de renovação da Geografia, principalmente
por que as fundamentações e o instrumental
da Geografia Tradicional não conseguiam explicar
as mudanças ocorridas na realidade pelo desenvolvimento
do capitalismo. Surgem então outras correntes
teóricas da Geografia Pragmática e da
Geografia Crítica, que realizam uma crítica
à Geografia Tradicional. A Geografia Pragmática
ou Nova Geografia ou ainda Geografia Quantitativa está
baseada no neopositivismo, realiza uma crítica
à incapacidade da Geografia Tradicional explicar
a realidade e às características não
práticas de seus estudos. O objetivo principal
desta nova corrente é criar uma tecnologia geográfica.
As análises são baseadas em dados. O uso
de modelos é amplo e o trabalho de campo é
negligenciado em detrimento da análise indireta.
(MORAES, 2003). Compõem o conjunto metodológico
da Geografia Pragmática o tratamento estatístico
dos dados, o uso do computador, do sensoriamento remoto
e do mapeamento automático, principalmente na
elaboração de tipologias. O uso do mapa
e dos procedimentos de mapeamento são ainda mais
intensos na Geografia Pragmática, pois o advento
do computador possibilitou trabalhar com mais agilidade
e com um volume maior de dados. O processo de mapeamento
se tornou mais rápido, aumentando as possibilidades
de produção e reprodução
de mapas. De acordo com Moraes (2003) e Fernandes (1999)
as principais críticas feitas a esta corrente
teórica estão direcionadas ao distanciamento
da realidade através de sua matematização.
A Geografia Crítica é uma corrente baseada
no materialismo histórico-dialético e,
no processo de renovação da Geografia,
além de fazer críticas à corrente
Tradicional, também critica a Geografia Pragmática.
Segundo Moraes, o centro da crítica é
o posicionamento das correntes tradicional e pragmática
frente à realidade. São criticados o empirismo
exacerbado e a despolitização do discurso
geográfico. A militância e a mudança
da realidade são objetivos dos pensadores da
corrente crítica. (MORAES, 2003). Uma das ênfases
da crítica realizada aos estudos das correntes
tradicional e pragmática diz respeito ao uso
exacerbado das técnicas. O seu uso é visto
como uma das causas do descomprometimento com a mudança
da realidade. Esta visão do uso da técnica
nos estudos geográficos acarretou negligência
do uso do mapa e de técnicas estatísticas
na Geografia Crítica. Disso decorre uma confusão
entre visão do mundo e os procedimentos de pesquisa,
como se a técnica(41) tivesse vontade
própria e o seu uso possibilitasse somente uma
leitura de mundo. A negligência do uso do mapa
não é particularidade da Geografia brasileira.
Como aponta Perkins (2004), este processo é comum
aos países onde a Geografia Crítica e
Cultural tiveram grande influência. Nesses casos,
os geógrafos preteriram o mapa a outras representações
gráficas. Desta forma, este posicionamento da
corrente crítica frente ao mapa não é
positivo ao desenvolvimento da Geografia e é
uma crítica possível à Geografia
Crítica. Ao ignorar todo o “instrumental”
das correntes tradicional e pragmática, a Geografia
Crítica reduziu as potencialidades de análise
e representação do espaço geográfico.
É sentido de contribuir com a Geografia Crítica
com a superação desta deficiência
que propomos a Cartografia Geográfica Crítica.
O trabalho de Lacoste (2003 [1985]) é considerado
um dos precursores da corrente crítica. Ele deixa
claro que é necessário explicitar este
caráter estratégico da Geografia e ensiná-lo
na escola. A consciência da dominação
exercida pelo Estado e pelas empresas através
do conhecimento geográfico é necessária
para a libertação da sociedade. As considerações
de Lacoste evidenciam que o autor assume a relação
direta que a Geografia deve manter com o mapa, que é
visto pelo autor como indispensável no pensar
e organizar o espaço. Contudo, na contramão
desta obra referencial para a corrente crítica,
a Geografia Crítica não deu o mesmo peso
que Lacoste ao mapa; ela simplesmente o ignorou.
A Cartografia Geográfica brasileira é
deficitária de obras que forneçam conjuntamente
subsídios teóricos e práticos para
o trabalho com mapas. Na Cartografia Geográfica
é inconcebível realizar análises
puramente teóricas ou então manuais extremamente
técnicos; teoria e técnica devem ter pesos
equivalentes no trabalho com a Cartografia Geográfica.
A partir desta referência, analisamos algumas
obras da Cartografia Geográfica que apresentam
conjuntamente teoria e procedimentos de mapeamento.
A principal referência da atualidade que apresenta
essas características são as obras de
Martinelli (1991, 1998 e 2003). Nelas o autor aborda
os processos de elaboração de mapas, gráficos
e análise de dados. A Cartografia Geográfica
nessas obras compreende essencialmente os procedimentos
de mapeamento da semiologia gráfica. A contribuição
de Martinelli para a Cartografia Geográfica brasileira
foi apresentar, de forma clara e detalhada, os princípios
da semiologia gráfica, indispensáveis
na elaboração cartográfica. Outra
referência muito utilizada é o livro Geocartografia,
de André Libault (1975). A obra é dividida
em duas partes (livros um e dois). No livro um, Determinação
planimétrica e altimétrica, o autor aborda
técnicas de levantamento de informações
do terreno e elaboração de mapas topográficos,
é a Cartografia de Base. Este primeiro livro
interessa muito mais ao cartógrafo do que ao
geógrafo. No livro dois, A constatação
cartográfica, que interessa mais diretamente
ao geógrafo, o autor aborda o tratamento de dados
estatísticos e diversas formas de representá-los
cartograficamente, tais como o método corocromático,
símbolos proporcionais, métodos isarítmicos,
representação da terceira dimensão
e deslocamentos.
Joly (2004 [1985]) apresenta em seu trabalho uma análise
breve de diversos temas ligados à Cartografia.
O autor enfatiza a classificação dos produtos
cartográficos segundo a escala e as técnicas
de mapeamento e também apresenta as potencialidades
de cada tipo de mapa. O trabalho não trata da
Cartografia Geográfica especificamente, porém
é útil para a introdução
aos diversos temas da Cartografia. A obra de Granell-Pérez
(2004), apesar da ênfase nos procedimentos técnicos,
constitui uma importante referência para a Cartografia
Geográfica por apresentar, a partir de exemplos
claros e de uma linguagem geográfica, diversos
procedimentos de trabalho com as cartas topográficas
do IBGE. Dentre outras utilidades ao trabalho do geógrafo,
o uso das cartas topográficas do IBGE é
muito importante no processo de ensino das noções
básicas de Cartografia.
Ramos (2005) dedica uma pequena parte do seu livro na
apresentação dos princípios básicos
da visualização cartográfica, sendo
que a maior parte do trabalho trata de Cartografia e
multimídia. É um trabalho importante para
quem pretende trabalhar Cartografia Geográfica
em associação com as formas digitais de
elaboração e disponibilização
de mapas. Gisele Girardi (1997 e 2003), também
com base na teoria crítica do mapa e em um enfoque
voltado ao ensino da Cartografia Geográfica,
apresenta importantes contribuições teóricas
para outras abordagens na leitura de mapas e para a
ressignificação de práticas cartográficas
na formação do profissional de Geografia.
Em seus trabalhos a autora discute os fundamentos da
Cartografia Geográfica e a importância
do mapa para a Geografia. Os trabalhos de Anjos (1999,
2000 e 2005), sobre o mapeamento de remanescentes de
quilombos, são exemplo de como o mapa pode auxiliar
no avanço de questões sociais.
O artigo de Théry (2004) apresenta os principais
fundamentos teóricos e metodológicos da
modelização gráfica. Surgida na
Geografia francesa da década de 1980, só
agora um artigo a este respeito é publicado em
uma revista brasileira. A partir de algumas hipóteses
básicas, o autor apresenta os fundamentos deste
“instrumento de análise regional”
(p.179). Em seguida é apresentada uma análise
do Brasil a partir da modelização gráfica,
o que possibilita uma compreensão clara da aplicabilidade
da teoria. Uma obra inovadora é o Atlas do Brasil,
de Théry e Mello (2005). De formação
francesa no que diz respeito à Cartografia Geográfica,
os autores trazem para o Brasil com a publicação
do trabalho, uma concepção de altas e
de Cartografia Geográfica diferente da predominante
na Geografia Brasileira. Os mapas demonstram as principais
características dos temas abordados. A análise
multivariada e a modelização gráfica
são amplamente empregadas neste trabalho, que
se constitui em uma referência indispensável
à discussão sobre os rumos da Cartografia
Geográfica brasileira.
Um tema importante a ser considerado na Cartografia
Geográfica é o uso dos Sistemas de Informações
Geográficas (SIG). O SIG é uma ferramenta
de mapeamento extremamente ampla e tem permitido a democratização
do acesso à informação espacial.
Ele traz importantes contribuições para
o desenvolvimento da Cartografia Geográfica porque
permite maior agilidade e qualidade no desenvolvimento
de tarefas específicas, como a definição
de coordenadas, adequação das bases cartográficas,
cruzamento de mapas e o trabalho com sensoriamento remoto.
De forma geral, o SIG permite ao geógrafo o desenvolvimento
de operações que, pelo alto grau de especialização
que exigem, poderiam estar restritas aos cartógrafos.
Seu uso na Geografia deve ser referenciado pelos fundamentos
da Cartografia Geográfica, ou seja, o mapa não
deve ser o fim, mas um meio para o desenvolvimento da
pesquisa geográfica. Desta forma, o SIG se insere
no conjunto de ferramentas disponíveis à
Cartografia Geográfica para o mapeamento.
A negligência do uso do mapa na Geografia brasileira
pode ser constatada na forma como ele é tratado
nos textos geográficos. Não raras são
referências aos mapas como ilustrações
ou figuras. A função alusiva e propagandista
do mapa não é segredo e demonstra o paradoxo
do mapa na Geografia brasileira. Exemplo disso são
os numerosos os livros que trazem mapas na capa para
atrair o leitor e caracterizá-lo como trabalho
geográfico, mas no interior, o texto é
a única forma de elaboração do
discurso. A cópia de mapas da internet, elaborados
com outras finalidades e com baixa resolução,
é outra prática corrente em trabalhos
geográficos. Frente a este uso primário
e ilustrativo, é preciso que o geógrafo
volte a produzir mapas e utilizá-los como instrumentos
de análise. Para isso, além da adoção
de novas abordagens cartográficas que disponibilizem
metodologias eficientes de elaboração
dos mapas, é necessário que haja, dentro
dos cursos de graduação e pós-graduação,
a valorização e investimento no ensino
de uma Cartografia Geográfica que aborde simultaneamente
técnica e teoria.
Para contextualizar a Cartografia Geográfica
e o mapa na Geografia brasileira analisamos anais de
três eventos de Geografia e a revista Terra Livre.
O primeiro conjunto de trabalhos analisado foi do XIII
Encontro Nacional de Geógrafos, realizado em
2002. Foram publicados nos anais do evento 1.324 trabalhos,
dos quais somente 32 (2,4%) são relacionados
à Cartografia. A maior parte desses 32 trabalhos
tratava de processos de mapeamento e implantação
de SIG em estudos de caso. Outro evento analisado foi
o VI Congresso Brasileiro de Geógrafos, com 1.335
trabalhos publicados nos anais. Deste total, somente
19 (1,4%) tem relação com a Cartografia
e/ou processos de mapeamento. O terceiro evento analisado
foi o VI Encontro Nacional da Anpege, o qual possui
em seus anais 453 trabalhos, sendo 11 (2,4%) de temas
pertinentes à Cartografia. Desses 11 trabalhos,
4 tratam de questões relacionadas aos SIGs.
A análise da revista Terra Livre é um
referencial importante para medir o uso do mapa na Geografia
brasileira, em especial na corrente crítica,
pois se trata da mais importante revista de Geografia
do Brasil. Para a análise da revista utilizamos
os oito números (14, 15, 16, 17, 18, 19, 20 e
21) publicados entre 1999 e 2003. Neste período
foram publicados na revista 85 artigos, dos quais nenhum
referente à Cartografia. Quanto à utilização
de mapas nos artigos, em todo o período analisado
foram utilizados 39 mapas, os quais estão concentrados
nas edições 20 (9 mapas) e 21 (23 mapas).
Outro fato que deve ser ressaltado é que os mapas
da edição número 21 estão
concentrados em apenas três dos 16 artigos nela
publicados.
Os dados ilustram bem a marginalização
do uso do mapa na Geografia brasileira e a ausência
de um debate em torno das questões teóricas
e metodológicas desta especialidade da Geografia.
Como vimos, o quadro precário do uso do mapa
e da Cartografia Geográfica no Brasil se deve
principalmente à visão do mapa estabelecida
pela Geografia Crítica, corrente amplamente difundida
na Geografia brasileira. A partir desta constatação,
é urgente a incitação de um debate
sobre a natureza do mapa e de seu uso pela Geografia
Crítica; é necessário difundir
metodologias que permitam novas práticas cartográficas
condizentes com os princípios desta corrente
teórica. A partir dessa constatação
e, como forma de contribuir para o debate, propomos
a Cartografia Geográfica Crítica, a qual
tem como uma de suas principais bases teóricas
a leitura desconstrucionista do mapa.
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desconstrucionista do mapa
NOTAS
(40)
Quanto aos procedimentos metodológicos da Geografia
Idiográfica propostos por Hartshorne, Moraes
afirma que o autor “argumentou que os fenômenos
variam de lugar a lugar, que as suas inter-relações
também variam, e que os elementos possuem relações
internas e externas à área. O caráter
de cada área seria dado pela integração
de fenômenos inter-relacionados. Assim, a análise
deveria buscar a integração do maior número
possível de fenômenos inter-relacionados.
[...] Seria uma análise singular (de um só
lugar) e unitária (tentando apreender vários
elementos), que levaria a um conhecimento bastante profundo
de determinado local.” (2003, p.88-89). Em relação
à Geografia Nomotética, “esta deveria
ser generalizadora, apesar de parcial. No estudo nomotético,
o pesquisador pararia na primeira e reduzil-la-ia (tomando
os mesmos fenômenos e fazendo as mesmas inter-relações)
em outros lugares. As comparações das
integrações obtidas permitiriam chegar
a um ‘padrão de variação’
daqueles fenômenos tratados. Assim, as integrações
parciais (de poucos elementos inter-relacionados) seriam
comparáveis, por tratarem dos mesmos pontos,
abrindo a possibilidade de um conhecimento genérico.”
(p.89-90).
(41) Não concordamos em designar a Cartografia
como uma técnica. Utilizamos esta designação
aqui porque é como ela é concebida na
corrente crítica.
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